O corpo neutro
por André Alves

O livro chegou-me às mãos em Roma. Nessa altura refletia sobre a imagem, a fotografia, a escultura e a memória. Andava a pensar em algo, ideias soltas, mas catalisadas. Estava a ler um livro do pintor português Júlio Pomar (1926-2018) ”Da cegueira dos pintores” e outro do escultor também português Rui Chafes “Entre o céu e a terra”. O Júlio fala muito da imagem na pintura e da própria imagem. O que me levou a perceber uma nuance que o hábito faz esquecer, que a imagem é só o que projetamos no cérebro, ou seja uma percepção do que a retina mostra e o cérebro filtra e constrói. Esta imagem é rica pois é viva e sem medium, não existe recriação num medium. Por outro lado a pintura, a fotografia, a escultura, ou a dança são recriações e projeções destas imagens. Da observação das pessoas no metro, enquanto lia, notei que normalmente a projeção na fotografia é mais fugaz, mais momentânea, na dança projeta-se num movimento incessante como um decalque químico no tempo e no espaço sobre esta imagem viva, em correção constante sobre o corpo vivo para ser imagem.

Se observarmos uma imagem que sucede antes e depois do click, muitas vezes cinco segundos são suficientes para aquela imagem se desfaça e perca a carga que poderia ter. Enquanto que se pensarmos numa escultura da mesma imagem, nesta permanecem os traços gerais por um, dois, minutos no mínimo. A posição dos olhos, as pestanas, a respiração, à partida, não entram diretamente na recriação da escultura mas na soma que o autor faz delas: as suas ideias desses traços, o seu modo de os transformar, recriar. Deste ponto de vista a escultura parece-me mais perto da memória, algo com traços gerais, muitas vezes físicos, quase difusos mesmo quando referimos memória fotográfica, outra nuance que o hábito fez esquecer.

Falando agora do teu livro e ligando-o à memória, numa primeira análise, a divisão em partes sugere-me um espelho quebrado entre ti a tua família, entre o presente e o passado. Fragmentos duma memória espalhada que preenche um espaço que te encontra no Brasil, ele próprio para nós, uma terra de reencontro. Há momentos de uma beleza enorme no texto, sobretudo a atmosfera inicial, o modo como as referências surgem de um modo natural. Por exemplo, a fotografia em que apareces na secretária com todos os livros é muito inspiradora, pois as referências vão aparecendo no texto aos poucos como uma viagem pela tua “secretária” e pelos instantes das tuas escolhas, das descobertas de possíveis cartas. O passado, o presente e o momento de leitura viajam pela imagem como por um mapa da história.

A palavra “agora” na segunda foto suscita-me estranheza, mas gosto do efeito que causa na primeira imagem como se a primeira fotografia da secretária só se completasse com a segunda. Tudo neste trabalho é-o no breve instante em que deixa de ser, “o duro desejo de durar” apresenta-se como a maior contradição, mas só ela é real.

Encontraste mesmo a fotografia da tua mãe naquele livro no Brasil? A meu ver, a verdade é que isso não interessa, interessa é que o leitor sente vontade de perguntar, tem esse efeito intimista. Como um corpo neutro que flutua e se apresenta ao poucos diante nós, como se todo o livro flutuasse no tempo e no espaço, como um corpo que dança. Um bola branca, etérea, da qual a metáfora pode ser a bola Nívea na praia. A esfera, que na memória é o índice para todas as tuas memórias que flutuam ainda hoje, possivelmente num cristalizado sonho de criança.

Voltando à reflexão sobre o medium e a imagem. A composição fotográfica é muito sensível ao enquadramento, tem muita resolução informativa. É um suporte que tem muito mais de científico do que de artístico, mas o contexto muda tudo, o tempo em que fotografia vive cria outro espaço em torno dela e deixa de ser o que representa. No entanto, presta-se a contar histórias tendo um discurso próprio, que no limite leva ao cinema, como um poema que se dilui com o tempo para a prosa continuar. É claro que não direto, na água, como exemplo, existem transições de fase, do líquido para o gelo, do vapor para a forma líquida outra vez, há sempre descontinuidades.

A fotografia é um suporte tão bom para respostas como para perguntas, mas creio que as fotografias do teu livro me deixam com mais perguntas.

O facto da tua fotografia ter escultura é muito interessante. É um mergulho avassalador dentro da imagem em que o objeto esculpido fica imóvel, invariante nas fotos e memória (Será mesmo?). O objeto esculpido, vejo agora, é o verdadeiro corpo neutro, imutável. Como se houvesse um espetador sempre presente na história, um duplo dele mesmo, um espetador da sua própria história num tempo a posteriori, ou seja, o simulacro para uma experiência fotográfica em que artefato é a escultura.

É extraordinariamente revelador da natureza do tempo fotográfico e do tempo da escrita em que o sujeito se separa do seu eu para se observar de um modo exterior, a partir dum “agora” em que decide fazer essa análise. Depois desse momento, durante a análise, também ele é um corpo neutro, espetador, e talvez o leitor também o seja, havendo na verdade a história dum vulto, de vultos que se observam. Na verdade somos nós, sem nos apercebermos, porque o invólucro é anónimo, por isso a verdade do reencontro é irrelevante, o eterno retorno é uma premissa universal.

O processo que ocorre na criação é documentado, desde o autor até leitor ninguém é esquecido, qual espelho face ao espelho. Temos acesso a tudo, o que é raro, porque alguém retira um dos espelhos, quebrando o infinito dessa sucessão, porém esta imagem é preservada, e por isso aproxima-se da escultura no seu caráter suspenso e invariante.

Oferecem-nos uma auto-representação e um discurso na primeira pessoa mas num modo não autobiográfico, narcisista, mas visto de costas, não importa a sua imagem mas o que ele vê, a sua experiência. É uma viagem de corpo presente ao corpo neutro que é de índice da história, da história de quem se apropria dela. Assim une-se o universo pessoal fotográfico de Sophie Calle com o corpo de Marina Abramovich.

Vejo o livro agora, depois de uns dias na estante, a lombada sem texto ou informação, apenas camadas de folhas cozidas a linha são o índice para o próprio livro feito de fragmentos. Neste sentido observo um carácter fractal na obra pela propriedade de auto-replicação: a lombada como símbolo do interior, a tua foto como o índice da viagem, e depois os vários episódios que se confundem e confluem para criar um tempo passado, de sonho, e de presente com um sentido passado, e ao mesmo tempo de oráculo para o futuro, do próprio leitor. Parece-me evidente, que o gesso é a pele da sibila que nos dá a certeza da história seja ela qual for. É uma história com um corpo dentro, mesmo que esta não pense, pois não se exprime, vive e por isso e existe mesmo sem letras na lombada.